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Livros Acadêmicos

1. Doenças transmitidas por alimentos como possibilidade temática no ensino de ciências

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José Luiz dos Santos Marques [1]

Jorge Cardoso Messeder [2]

DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/livros/1826

INTRODUÇÃO

A alfabetização científica vem sendo defendida, nas últimas duas décadas, por pesquisadores da área do Ensino de Ciências, como um dos pilares da educação científica e tecnológica, por possibilitar aos estudantes um protagonismo social, ao acompanhar os anseios que emergem das sociedades em seus tempos atuais. Na urgência dessa alfabetização científica, surge a necessidade de uma formação que permita aos cidadãos participarem da tomada de decisões em assuntos que se relacionam com a ciência e tecnologia, sendo um argumento democrático e frequentemente utilizado por estudiosos que reclamam a alfabetização científica e tecnológica como componente básico da educação para a cidadania (Cachapuz et al., 2005).

De maneira geral, alguns conteúdos disciplinares apresentam-se de maneira descontextualizada da realidade dos estudantes, ainda que sejam temas de relevância no Ensino de Ciências. Para este texto, trazemos, como exemplo, as Doenças Transmitidas por Alimentos (DTA), vivenciadas em todas as esferas sociais[3].

Segundo Ferrari e Fonseca (2019), as DTA são doenças causadas pelo consumo de alimentos e/ou água contaminada, podendo ocorrer em qualquer ambiente onde a manipulação sem medidas adequadas de higiene não forem adotadas. Os principais alimentos envolvidos nas DTA são: ovos e os produtos que os tenham como base, leite e seus derivados, carnes de aves, suínos e bovinos in natura, cereais, hortaliças e pescados (BRASIL, 2016).

De ocorrência mundial, as DTA podem resultar em surtos de pequenas, médias e grandes proporções. Dados da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) estimam que nesta região, a cada ano, 77 milhões de pessoas sofrem de DTA e mais de 9 mil morrem, embora sejam preveníveis e com sabidas formas de transmissão. Outro ponto é o impacto nos custos com saúde pública e, segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde), US$ 7,4 milhões anuais são gastos em sistemas de saúde reduzindo o desenvolvimento econômico como resultado da perda de confiança no turismo seguro, na produção de alimentos e no sistema de comercialização (BANCO MUNDIAL, 2016).

Vários fatores contribuem para a ocorrência das DTA, dentre os quais a globalização, o crescente número populacional, surgimento de grupos vulneráveis, mudança de hábitos alimentares, urbanização desordenada e a necessidade de produção de alimentos em grande escala (DIAS; LEAL BERNARDES; ZUCCOLI, 2011, p. 19).

Numa análise do contexto acadêmico, são encontrados poucos trabalhos voltados à interseção entre DTA e Ensino de Ciências. A esse respeito, Marques e Messeder (2022) buscaram mapear os trabalhos na forma de estado do conhecimento a fim de identificar o cenário desta interseção, com vistas a uma maior discussão no contexto pedagógico, principalmente no Ensino Fundamental.

AS DTA NO ENSINO DE CIÊNCIAS

De acordo com dados de pesquisas realizadas por Sezefredo et al. (2016), as indústrias de alimentos seguem rigorosos controles de legislação, a partir de órgãos governamentais como o   Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (MAPA), o Ministério da Saúde (MS), que inclui a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Existem também órgãos de vigilância sanitária que atuam nos estados e municípios brasileiros.

Em toda a cadeia produtiva dos gêneros alimentícios torna-se de extrema importância que sejam tomadas as devidas medidas de higiene e controle. Ainda assim, as residências são os locais onde pode haver maior controle sobre a higiene no preparo dos alimentos. Cada pessoa pode ser responsável pela segurança alimentar desde que receba instruções dos riscos que algumas práticas representam para sua saúde, conforme atestam estes autores.

Ações de educação em saúde, que foquem a redução das doenças transmitidas por alimentos, devem ser intensificadas e aplicadas de forma contínua para toda a população; e quanto mais cedo o indivíduo adquirir o conhecimento sobre aquisição e preparo de um alimento seguro, maior será a probabilidade de formação de hábitos saudáveis. (SEZEFREDO et al., 2016, p. 82)

Disseminar informações sobre a prevenção das DTA pode constituir uma ferramenta eficaz na redução da incidência e na geração de mudanças significativas. Segundo Santos e Pereira (2013) e Braz et al. (2018 apud SILVA et al., 2020, p. 327), para que se tenha eficiência nos processos de ensino e aprendizagem a longo prazo, é de extrema importância que sejam realizadas medidas educacionais na temática a ser abordada a uma população, desta maneira, é indiscutível a necessidade da aplicação de modelagem de educação em saúde, buscando levar informações preventivas às comunidades, sobretudo, às crianças, consideradas replicadoras de conhecimento.

Os problemas sociais são integrados na proposta educacional dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) como temas transversais (BRASIL, 1997). Segundo este documento, a transversalidade pressupõe um tratamento integrado das áreas e um compromisso das relações interpessoais e sociais escolares com as questões que estão envolvidas nos temas. Nesse aspecto, a área de Ciências Naturais pode contribuir para o entendimento da saúde como um valor pessoal e social. Ao se considerar o Ensino Fundamental como o nível de escolarização obrigatório no Brasil, não se pode pensar no Ensino de Ciências como um ensino propedêutico, voltado para uma aprendizagem efetiva em um momento futuro.

Dentro dos parâmetros naturais, o corpo humano tem um dinamismo único, onde os seus diferentes sistemas e aparelhos possuem funções específicas, e, portanto, devem estar em permanente manutenção. No processo educativo em Ciências, torna-se importante que os estudantes compreendam as diversas formas de defesa usadas pelo corpo, para a invasão de elementos estranhos, como os micro-organismos. Com isso, há a integralidade do corpo numa totalidade.

O tema alimentação é algo importante na perspectiva do Ensino de Ciências, possibilitando aos estudantes o aprofundamento sobre os aspectos culturais e educacionais dos hábitos alimentares, suas principais substâncias, funções e a importância da higiene neste contexto. Por ser uma necessidade biológica comum a todos os seres humanos, as discussões sobre os tipos de alimentos perpassam a abordagem cultural dos diferentes locais, assim como os hábitos que envolvem o seu condicionamento, preparo e consumo.

Sob a perspectiva do corpo como algo integrado, as DTA, por exemplo, podem ser compreendidas como um estado de desequilíbrio deste e não de alguma de suas partes. A associação direta entre higiene e alimentação precisa ser enfatizada. O reconhecimento da possibilidade de contaminação da água e de alimentos por fezes, produtos químicos e agrotóxicos, assim como a identificação de objetos previamente contaminados como fontes para as doenças são componentes da formação dos estudantes acerca dos temas que envolvem a alimentação saudável.

Para que exista uma vida saudável, desde a infância, é imprescindível que hábitos de higiene corporal façam parte do cotidiano das pessoas. Os procedimentos para esses hábitos devem, também, estar presentes no ambiente escolar, como exemplo, a significação da lavagem das mãos. Apesar dessas considerações, existe um grande desafio na abordagem dessa higiene corporal, pois as realidades dos estudantes devem ser consideradas.

Cabe ressaltar que pesquisas devem ser realizadas para produzir informações sobre os usos e costumes da comunidade, com análises que permitam encontrar um caminho de articulação dos conhecimentos e possibilidades de ações por parte de todos os envolvidos, sejam docentes, família e governos. Não podemos esquecer de que existem situações nas quais domicílios apresentam total ausência de sanitários ou acesso à água potável, e que não podem ser tomadas como fatores excludentes do processo educativo. A educação não pode ter o papel de substituir as modificações que devem ser aplicadas para garantir a qualidade de vida e saúde das pessoas, mas pode contribuir para que a sua efetivação ocorra de fato.

Entre os diversos conteúdos a serem desenvolvidos, estão: noções gerais de higiene dos alimentos relativas à produção, transporte, conservação, preparo e consumo; reconhecimento das doenças associadas à falta de higiene no trato com alimentos: intoxicações, verminoses, diarréias e desidratação; medidas simples de prevenção e tratamento; identificação das doenças associadas à ingestão de água imprópria para o consumo humano; rejeição ao consumo de água não potável; medidas práticas de autocuidado para a higiene corporal: utilização adequada de sanitários, lavagem das mãos antes das refeições e após as eliminações, limpeza de cabelos e unhas, higiene bucal, uso de vestimentas e calçados apropriados, banho diário; valorização da prática cotidiana, e progressivamente mais autônoma de hábitos de higiene corporal favoráveis à saúde e responsabilidade pessoal na higiene corporal como fator de proteção à saúde individual e coletiva.

É adequado que o professor organize trabalhos de diferentes áreas em função de problemáticas de saúde para que, ao tratar desses temas, os estudantes aprendam a lançar mão de conhecimentos variados na busca de compreensão e de soluções para questões reais, assim como na aprendizagem de procedimentos efetivos que os capacitem a agir em diferentes situações. A promoção de debates em torno de fatos importantes como a ocorrência de epidemias que ameacem a saúde coletiva, assim como a pesquisa do sistema de saneamento básico da região, podem ser recursos que permitam o desenvolvimento de um trabalho integrado das diversas áreas.

Nos dias atuais, o Ensino de Ciências insere-se, segundo a Base Nacional Comum Curricular – BNCC (BRASIL, 2018), na área conhecida como “Ciências da Natureza” e no Ensino Fundamental é representado por um único componente: a disciplina “ciências”. Já no Ensino Médio, o saber científico se distribui nas disciplinas de Biologia, Física e Química, possuindo enorme relevância para o aprimoramento dos conhecimentos e articulações com os espaços que compõem a vida cotidiana. A BNCC, contrária às previsões, não se constitui numa substituição dos PCN, embora seja uma referência obrigatória para a construção dos currículos de Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio.

A área de Ciências da Natureza, preconizada na BNCC, traz uma relação com o desenvolvimento do letramento científico, uma vez que trata da compreensão e interpretação do mundo, sendo ele natural, social e tecnológico.  É possível também, reconhecer que os apontamentos indicam que podemos transformar o mundo, com base nos aportes teóricos e metodológicos das ciências. Em resumo, o aprendizado das ciências não se reduz ao letramento científico, mas sim, em um contexto no qual os estudantes podem ter a capacidade de opinar, criticar e escolher, no e sobre o mundo.

A história da escola está indissoluvelmente ligada ao exercício da cidadania. A ciência que a escola ensina está impregnada de valores que buscam promover determinadas condutas, atitudes e interesses, por exemplo, os cuidados com a saúde. Esse mesmo processo ocorre com os demais componentes curriculares e áreas de conhecimento, pois devem se submeter às abordagens próprias aos estágios de desenvolvimento dos alunos. O acesso ao conhecimento escolar tem, portanto, dupla função: desenvolver habilidades intelectuais e criar atitudes e comportamentos necessários para a vida em sociedade.

À GUISA DE CONCLUSÃO

Dentro da perspectiva de educação em saúde voltada às DTA, o Ensino de Ciências deverá promover situações cujos resultados cognitivos estejam de acordo com os pressupostos apresentados nos currículos escolares, e isso exige uma movimentação pedagógica que estimule o interesse e a curiosidade científica, instaurando nos estudantes aptidões voltadas à análise das situações-problema apresentadas.

A escola ainda é uma instituição que, privilegiadamente, pode se transformar num espaço genuíno de promoção da saúde. Essa promoção deve ser valorizada entre todos os que atuam nos espaços escolares, reforçando o desenvolvimento de estilos saudáveis de vida, oferecendo opções viáveis e atraentes para a prática de ações que promovam a saúde, favorecendo a participação ativa dos educadores na elaboração do projeto pedagógico da educação que privilegiem o binômio Educação-Sáude.

No exercício da educação em saúde no Ensino Fundamental, deve-se ter como foco que conhecimentos, atitudes, aptidões, comportamentos e práticas pessoais devem ser articulados com a sociedade em geral. Nesse viés, a prática educativa permite que a autonomia seja desenvolvida, atendendo, ao mesmo tempo, os objetivos sociais. Educar para a saúde não é substituir as ações que são necessárias para garantir a qualidade de vida e saúde das pessoas, mas pode contribuir para a sua efetivação. Em síntese: Educação e Saúde devem ser entendidas juntas, sem possibilidades de cisões.

REFERÊNCIAS

BANCO MUNDIAL. Relatório Anual de 2016 do Banco Mundial. 2016. Disponível em: https://openknowledge.worldbank.org/bitstream/handle/10986/24985/210852PT.pdf. Acesso em: 23 fev. 2023.

BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília: MEC/SEF, 1997.

BRASIL. Ministério da Saúde. Surtos de doenças transmitidas por alimentos no Brasil. Março de 2016. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/d/dtha/publicacoes/surto-de-doencas-transmitidas-por-alimentos-dta. Acesso em: 23 fev. 2023.

BRASIL. MEC. Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Brasília, 2018.

CACHAPUZ, A.; GIL-PÉREZ, D.; PESSOA, A. M.; PRAIA, J.; VILCHES, A. A necessária renovação do ensino das Ciências. São Paulo: Cortez, 2005.

DIAS, R. S., LEAL BERNARDES, A. F., ZUCCOLI, P. C. A importância do processo de investigação na elucidação de surtos de doenças transmitidas por alimentos (DTA). Periódico Científico de Núcleo de Biociências Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix, v. 01, n.02, p. 17-23, 2011.

FERRARI, A. M.; FONSECA, R. V. Conhecimento de consumidores a respeito de doenças transmitidas por alimentos. UNESC em Revista, v. 3, n. 1, p. 1-12, 2019.

MARQUES, J. L. S.; MESSEDER, J. C. O estado do conhecimento sobre as doenças transmitidas por alimentos no ensino de ciências. RECIMA21 – Revista Científica Multidisciplinar, v. 3, n. 11, p. e3112228, 2022. Disponível em: https://recima21.com.br/index.php/recima21/article/view/2228. Acesso em: 23 fev. 2023.

SANTOS, T. C. DOS; PEREIRA, E. G. C. Histórias em quadrinhos como recurso pedagógico. Revista Práxis, v. 5, n. 9, p. 51–56, 2013.

SEZEFREDO,T. S.; MURATA, F. H. A.; PERESI, J. T. M.; PASCHOAL, V. D. A.; PEDRO, H. S. P.; NARDI, S. M. T. História em quadrinhos para ensino e prevenção das doenças transmitidas por alimentos. Arquivos de Ciências da Saúde, n. 23, v. 2, 81-86, 2016.

SILVA, N. R.; CENTENARO, J. R.; GRUNITZKY, L.; SOUZA, M. C.; DANTAS, L. Y.; CORREA, G. T.; BRAZ, P. H. Metodologias ativas para o ensino de zoonoses para crianças de séries iniciais. Brazilian Journal of Animal and Environmental Research, v. 3, n. 2, p. 326–333. Disponível em: Metodologias ativas para o ensino de zoonoses para crianças de séries iniciais / Active methodologies for teaching zoonoses for children in initial series | Brazilian Journal of Animal and Environmental Research (brazilianjournals.com.br).  Acesso em: 23 fev. 2023.

[1] Licenciado em Ciências Biológicas pela UFRJ e Especialista em Educação Básica (UERJ). Professor da Rede Privada de Ensino no Rio de Janeiro. Mestrando do Programa de Pós-graduação em Ensino de Ciências da Natureza da Universidade Federal Fluminense (PPECN-UFF). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4806-4842.

[2] Químico Industrial pela UFF, mestrado e doutorado em Ciências pelo Instituto Militar de Engenharia (IME). Professor do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) e docente permanente do PPECN-UFF.  ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7396-1596. Currículo Lattes: https://lattes.cnpq.br/5836221673817388.

[3] Os apontamentos deste capítulo fazem parte de uma pesquisa de Mestrado Profissional (http://mestradoensinociencias.uff.br/).  O produto educacional que vem sendo elaborado traz a temática DTA, na forma de um Caderno Pedagógico voltado à compreensão do tema no Ensino Fundamental.

José Luiz dos Santos Marques

José Luiz dos Santos Marques

Licenciado em Ciências Biológicas pela UFRJ e Especialista em Educação Básica (UERJ). Professor da Rede Privada de Ensino no Rio de Janeiro. Mestrando do Programa de Pós-graduação em Ensino de Ciências da Natureza da Universidade Federal Fluminense (PPECN-UFF). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4806-4842.

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