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Violência doméstica e mulheres na fronteira de Foz do Iguaçu

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Patricia Helder Okuno [1]

José Victor Franklin Gonçalves de Medeiros [2]

Lisssandra Espinosa de Mello Aguirre [3]

DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/livros/3252

INTRODUÇÃO

As dinâmicas sociais, culturais e econômicas transcendem e transformam as fronteiras de diferentes formas, impactando em questões como direitos humanos, justiça e gênero.

Ainda, as regiões fronteiriças se caracterizam pela ausência ou distanciamento do controle e da influência do Estado e políticas pública, ou seja, o poder se concentra nos centros de tomada de decisão de cada país, uma vez que as fronteiras estão configuradas como as últimas zonas periféricas.

Assim suas demandas e necessidades não são vivenciadas pelos tomadores de decisões nacionais, e as normas, regras, políticas e controles são pensados de modo descendente, este contexto ainda é potencializado com a invisibilidade dos elementos gênero e etnia.

FRONTEIRA E PANORAMA DA VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES EM FOZ DO IGUAÇU

Diante deste contexto a fronteira é “o ponto limite de territórios que se redefinem continuamente e que são disputados de diferentes modos por diferentes grupos humanos” (MARTINS, 2009, p. 10).

Têm surgido debates acerca dos processos transfronteiriços e do gênero, que nem sempre é trabalhado como parte da fronteira. Como explica Peggy Levitt (2015), os pesquisadores estudam capitais transnacionais, religiões e movimentos sociais de maneira isolada.

Cabe mencionar que em pesquisa quantitativa realizada em 2022, onde se analisou a mortalidade feminina por agressão em todos os 122 municípios da linha de fronteira do Brasil, onde “observou-se uma mortalidade feminina por agressão maior do que a média nacional” (MENEGHEL et al.,  2022, p. 499).

Desta maneira é evidente a necessidade de compreender o gênero por uma perspectiva transnacional prática desde a vivência transfronteiriça e o lugar de vulnerabilidade em que a mulher se encontra.

E ainda, conforme preleciona Parodi e Gama (2010), como herança de uma colonização religiosa somada aos costumes da corte portuguesa, o modelo patriarcal estabeleceu-se desde o Brasil Colônia. A violência doméstica e familiar contra a mulher advém de uma herança cultural baseada no antigo regime patriarcal, no qual o homem tinha o poder absoluto sobre a família e inclusive sobre a mulher (DIAS, 2010, p. 40-41). Nesse sentido, Cisne aponta que “as relações sociais de sexo, raça e classe são antagônicas e estruturantes porque determinam materialmente a exploração do trabalho, por meio da divisão de classe e da divisão sexual e racial do trabalho” (CISNE, 2018, p. 212).

Ao analisar as vertentes ou etapas acerca da ideia de igualdade, Flávio Piovesan (2013) evidencia que somente em 1979 foi aprovada pelas Nações Unidas a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, que reforçou o entendimento sobre as relações de gênero como fator preponderante para alcançar tal isonomia, diante do fato de que tal tratado “enfrenta o paradoxo de ser o instrumento que recebeu o maior número de reservas formuladas pelos Estados, dentre os tratados internacionais de direitos humanos”(PIOVESAN, 2013, p. 268).

Portanto, a busca por trazer visibilidade a tais questões implica discutir além de aspectos triviais, requer compreender que a violência de gênero possui aspectos pessoais, em suas relações de poder, culturais e políticos, sendo estes mecanismos capazes de perpetuar dominações e privilégios em desfavor das mulheres, silenciando-as (SILVA; FEITOSA NETO; OLIVEIRA, 2019). Tendo em vista esse panorama e após muitas lutas, é que se constatou em nosso país a demanda pela alteração da realidade social e encaminhou-se a elaboração da Lei 11.340, de 07 de agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha.

De acordo com o referido texto legal, entende-se por violência doméstica e familiar toda a espécie de agressão (ação ou omissão) dirigida contra a mulher, em um determinado ambiente (doméstico, familiar ou de intimidade), baseado no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.

A violência doméstica contra a mulher é um tipo de violação dos direitos humanos fundamentais “com graves consequências não só para o seu pleno desenvolvimento pessoal, comprometendo o exercício da cidadania e dos direitos humanos” (CAVALCANTI, 2012, p. 56-58).

Apesar disso, muitas das mulheres agredidas por seus companheiros não prosseguem até o final do procedimento administrativo (inquérito policial) nem do processo judicial, outras sequer procuram algum tipo de serviço, haja vista que denunciar o marido à polícia pode ser uma atitude bastante criticada pelo círculo de familiares e de amizades de uma mulher, inclusive por ela mesma.

Apesar de o número de mulheres a relatarem seus casos de violência doméstica ainda estarem abaixo do real número de ocorrências, especificamente no município de Foz do Iguaçu – PR, tem-se que dados do SINAN (Sistema de Informação de Agravos de Notificação) informados ao Ministério da Saúde[1], demonstram de forma clara o grau elevado da violência doméstica na cidade, referente aos anos de 2020 e de 2021, recorte feito em virtude da pandemia por COVID-19.

Acerca das alterações geradas na realidade da população diante dos impactos trazidos pelo coronavírus, destaca-se o isolamento social e o confinamento doméstico, que são fatores agravantes quando se trata de violência contra mulher, conforme pesquisa realizada em 2023 pelo Instituto Datafolha:

O autor da violência é conhecido da vítima na maior parte dos casos (73,7%). O que mostra que o lugar menos seguro para as mulheres é a própria casa – 53,8% relataram que o episódio mais grave de agressão dos últimos 12 meses aconteceu dentro de casa. Esse número é maior do que o registrado na edição de 2021 da pesquisa (48,8%), que abrangeu o auge do isolamento social durante a pandemia de covid-19 (SOUZA, 2023).

Ademais, a maioria dos casos de agressão ocorre nas faixas etárias dos 10 aos 14 anos e dos 20 aos 49 anos, o que demonstra que o sistema do patriarcado e do machismo estão enraizados na nossa sociedade ainda hodiernamente.

Os dados que serão vistos a seguir são preocupantes para uma cidade de médio porte, que segundo IBGE de 2021 possui uma população de 257.971 habitantes, haja vista que certamente estes índices da violência estão muito aquém da realidade.

Durante o ano de 2018 (anterior ao período da pandemia por Covid-19), ocorrem 503 eventos e em um recorte durante o período da pandemia de COVID-19, pode-se observar um número expressivo no ano de 2020, primeiro período de isolamento social, onde ocorreram 408 eventos, quando compara ao ano de 2021, onde houve outros 174 eventos em Foz do Iguaçu-PR, reforçando que o lar acabou sendo um lugar de grande perigo para as mulheres, inclusive mais perigoso que a própria via pública, fato este que traz um relevante dado estatístico, tendo em vista que o lar pode ser considerado – para muitas mulheres – um local de multiplicações infindáveis da violência (agressões não somente psicológicas, sexuais como físicas, podendo inclusive levar à morte). Sendo que no ano de 2022 a residência continua sendo o lugar mais perigoso para a mulher pois há um total de 528 caso contra 55 casos de violência doméstica cometidos na via pública, mesmo após o término da pandemia por Covid-19.

Isso revela que mesmo na frente de testemunhas as mulheres podem não estar seguras. Conforme pode ser melhor visualizado nas tabelas abaixo.

Quadro 1 – Locais de ocorrências das agressões desferidas contra as mulheres em Foz do Iguaçu nos anos de 2018 a 2022

Local de Ocorrência 2018 2019 2020 2021 2022
Residência 503 759 408 174 528
Habitação Coletiva 7 8 1 3 12
Escola 13 21 4 2 9
Local de prática esportiva 2 2 3 1 1
Bar ou Similar 7 5 2 6 11
Via pública 79 68 47 16 55
Comércio/Serviços 5 5 4 4 3
Outros 103 146 80 43 38
Total 752 1063 549 249 830

Fonte: Ministério da Saúde – Sistema de Agravo de Notificação (SINAN).

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) também apresenta dados relevantes para o índice de violência doméstica no Brasil. Segundo a pesquisa divulgada em 2021, no ano de 2019, 30,4% dos homicídios contra as mulheres aconteceu dentro de casa. No entanto, esse número aumentou 22% entre os meses de março e abril de 2020. Tendo em vista que foi nesse período, que aconteceu a quarentena obrigatória em virtude da pandemia de Covid-19. E, por isso, as mulheres passaram a conviver mais com seus agressores dentro do lar.

Já em relação aos tipos de violência, as que mais ocorreram foram físicas; psicológicas e/ou morais (esses últimos tipos de violência doméstica podem ser muito mais sutis na prática. O que não significa que seja menos dolorosa ou menos perigosa para a vítima); e sexuais.

Quadro 2 – Principais tipos de violência contra as mulheres em Foz do Iguaçu nos anos de 2020 e 2021

Tipo de violência 2020 2021
Física 348 135
Psicológica/moral 102 60
Tortura 27 16
Sexual 205 118
Tráfico de Seres Humanos 0 0
Financeira /Econômica 6 3
Negligência /Abandono 44 16
Outra Violência 44 18
Total 776 366

Fonte: Ministério da Saúde – Sistema de Agravo de Notificação (SINAN).

Portanto, sendo a violência doméstica uma forma de violação de direitos humanos, precisa ser tratada com mais rigor e seriedade, apesar de a luta pelos direitos da mulher ter avançado muito no Brasil. Tendo em vista que apenas no município de Foz do Iguaçu, tem-se que ocorreram 348 casos de violência física no ano de 2020 contra as mulheres, 102 casos de violência psicológica e 205 casos de violência sexuais relatadas no referido ano.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Constatou-se que no ambiente doméstico ocorre uma divisão intrínseca em relação aos papéis que o homem e a mulher exercem, de modo que a violência doméstica e familiar contra a mulher, sendo fundamental compreender a existência de um aspecto histórico de herança cultural baseada no antigo regime patriarcal, no qual o homem tinha o poder absoluto sobre a família e inclusive sobre a mulher, que, em regra, a considerava de seu pertencimento.

Tendo em vista os dados estatísticos apresentados, em face da violência doméstica contra a mulher no município de Foz do Iguaçu-PR, percebe-se que a região de fronteira é mais violenta no que diz respeito especificamente às mulheres e, que, portanto, merece um olhar mais aprofundado dos órgãos governamentais em relação à aplicação de políticas públicas mais efetivas que possam mitigar esse tipo de violência.

Nesse sentido, conclui-se que tanto a desigualdade entre homens e mulheres, quanto a eficiência das leis estão atreladas a medidas governamentais para aplicá-las de forma mais eficaz e, também, tem-se que é necessário fazer uso de políticas públicas educativas-preventivas (nas escolas públicas e particulares) e de conscientização e acompanhamento psicológico dos agressores, com fins de auxiliar na redução dos casos de violência e, inclusive, nos gastos do governo com a saúde e com o sistema prisional.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei n. 11.340, de 07 de agosto de 2006. Lei Maria da Penha. Brasília: Planalto, 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11340.htm. Acesso em: 05/07/2022.

CAVALCANTI, S. V. S. de F. Violência Doméstica Contra a Mulher no brasil: Análise da Lei Maria da Penha, n. 11.340/06. Bahia: Jus Podivm, 2012.

CISNE, M. Feminismo e marxismo: apontamentos teórico-políticos para o enfrentamento das desigualdades sociais. 2018. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sssoc/a/kHzqt9vwyWmMyFd6hZjDmZK/?lang=pt. Acesso em: 27/07/2022

DIAS, M. B. A Lei Maria da Penha na Justiça: A efetividade da Lei n. 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.

IBGE. Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil. IBGE, Coordenação de População e Indicadores Sociais. Rio de Janeiro, 2021. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca- 75 catalogo?view=detalhes&id=2101784. Acesso em: 03/08/2022.

LEVITT, P. Constructing Gender Across Borders: A Transnational Approach. In Analyzing Gender, Intersectionality, and MultipleInequalities: Global, Transnational and Local Contexts. 2015; p. 163-183.

MARTINS, J. de S. Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano. São Paulo: Contexto, 2009.

MENEGHEL, S. N. et al. Feminicídios em municípios de fronteira no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, [S.L.], v. 27, n. 2, p. 493-502, fev. 2022. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/L7YcwTHgFJmbBKSQSTbvvWn/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 29 jun. 2023.

PARODI, A. C.; GAMA, R. R. Lei Maria alojamento (8059) da Penha. Comentários à Lei n. 11.340/2006. Campinas: Russell Editores, 2010.

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 14. ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013.

SILVA, J. C. G.; FEITOSA NETO, P. M.; OLIVEIRA, I. M. Direito de ser quem se é: mulheres migrantes em nome de direitos. Interfaces Científicas – Direito. Aracaju, v. 7, n. .3, p. 151 – 161, jul. 2019. Disponível em: https://periodicos.set.edu.br/direito/article/view/7673/3506. Acesso em: 26 abr. 2023.

SOUZA, Ludmilla. Mais de 18 milhões de mulheres sofreram violência em 2022: em média, vítimas relataram ter sofrido quatro agressões no ano. Agência Brasil. 2023. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2023-03/mais-de-18-milhoes-de-mulheres-sofreram-violencia-em-2022. Acesso em: 29 jun. 2023.

APÊNDICE – NOTA DE RODAPÉ

2. Dados podem ser acessados através do site http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/tabcgi.exe?sinannet/cnv/violepr.def

[1] Mestranda no Programa de Mestrado e Doutorado em Sociedade Cultura e Fronteira da UNIOESTE (Universidade Estadual do Oeste do Paraná), Especialista em Advocacia Geral pela UNICID (Universidade Cidade de São Paulo), Bacharel em Direito e em Turismo ambos pela UNIOESTE (Universidade Estadual do Oeste do Paraná). ORCID: 0000-0002-3209-9127. CURRÍCULO LATTES: http://lattes.cnpq.br/3846330181337257.

[2] Mestre em políticas Públicas e Desenvolvimento pela UNILA. ORCID: https://orcid.org/0009-00076364-1859. CURRÍCULO LATTES: http://lattes.cnpq.br/3541653366394547.

[3] Orientadora. Doutorado em Direito pela Universidade Federal de Parana (2016); Mestrado em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul-RS. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2590-2065. CURRÍCULO LATTES: http://lattes.cnpq.br/83331838960773909.

Patricia Helder Okuno

Patricia Helder Okuno

Mestranda no Programa de Mestrado e Doutorado em Sociedade Cultura e Fronteira da UNIOESTE (Universidade Estadual do Oeste do Paraná), Especialista em Advocacia Geral pela UNICID (Universidade Cidade de São Paulo), Bacharel em Direito e em Turismo ambos pela UNIOESTE (Universidade Estadual do Oeste do Paraná). ORCID: 0000-0002-3209-9127. CURRÍCULO LATTES: http://lattes.cnpq.br/3846330181337257.

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