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Livros Acadêmicos

O ofício do analista no universo lacaniano: a psicanálise pós Freud

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Najla Gergi Krouchane [1]

Araceli Albino [2]

DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/livros/3202

Nesse presente trabalho serão apresentados aspectos relativos às contribuições de Lacan para a psicanálise, a partir do seu retorno a Freud, o fundador da psicanálise. Posteriormente a Freud, Lacan traz uma perspectiva diferente dos pós-freudianos da época, ou seja, o grupo dos Klenianos da escola inglesa. Nesse contexto, Lacan retorna a Freud, organiza conceitos já existentes, formula novos conceitos e preza pela essência da psicanálise, que refere-se a dar lugar ao sujeito do inconsciente. Será explanado também a visão lacaniana sobre o ofício do analista.

Além dos principais conceitos articulados por Lacan apresentados como, os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, também se mostram importantes: processo de alienação e separação; posição do desejo da mãe e função do nome no pai; Metáfora Paterna; Grande Outro; pequeno outro; Estádio do Espelho; falo; o objeto a; gozo; os quatro discursos; os três registros psíquicos, o Real, Simbólico e Imaginário. Lacan organiza as estruturas psíquicas pensadas por Freud, a neurose, psicose e perversão.

Nos seus seminários há inúmeros conceitos, a psicanálise Lacaniana se destaca por ser conceitual e pelas articulações referentes a outras temáticas e autores de sua época, principalmente relacionados à filosofia, sociologia, antropologia, linguística, mitologia, matemática, religião, dentre outras ciências. Freud utilizou-se dessa proposta, realizando o resgate em diversas ciências, principalmente pelo pensamento filosófico e relacionando com a psicanálise.

Os conceitos fundamentais da psicanálise foram retomados e explanados por Lacan (1964) afirmando que os conceitos de inconsciente, repetição, transferência e pulsão são fundamentais e basilares para a psicanálise. Lacan (1953A) critica a psicologia do Ego, por dar ênfase às questões do consciente e do ego, para ele, ao contrário da escola inglesa, o inconsciente é o que rege a constituição psíquica     .

Lacan (1964) reformula o conceito das pulsões proposto por Freud, como oral, anal, escóptica e invocante, acrescentando respectivamente seus objetos principais: seio, fezes, olhar e voz. Lacan (1964) acrescenta a questão do olhar e da voz, que são sensações primordiais para o bebê. Como Freud, as pulsões para Lacan tem objeto variável, a pulsão vai ter sentidos diferentes dependendo do significante que se apresenta ao primeiro significante. A escola inglesa dá ênfase aos mecanismos de defesa do ego, diferente de Lacan que se preocupou com as manifestações inconscientes e a sua força pulsional.

A psicanálise tem como foco o que é de singular do sujeito, de forma que o sujeito se possa modificar aquilo que traz sofrimento e causa mal-estar. Para isso, é necessário que o analisando associe livremente, para que se possa emergir o seu conteúdo inconsciente. Para Freud (1905), a análise tem como objetivo reelaborar vivencias traumáticas que não puderam ser simbolizadas, e assim fazendo um rearranjo com seu sintoma, ou seja, dar outro significado.

A proposta da técnica psicanalítica é auxiliar o sujeito naquilo que ele afirma como sofrimento, ao contrário das convenções sociais que decretam as normas de como ser e viver. Nesse contexto, para Freud (1905) a análise é uma das técnicas que tem implicação mais profunda e de maior contorno, o qual pode alcançar uma mudança significativa no sujeito. Para que a técnica tenha esse efeito é necessário um analista, esse analista sendo um sujeito a que se endereça o que vai ser dito, por isso o analista é alguém “escolhido” pelo analisando. Lacan (1964) enfatiza que o analista é escolhido por uma transferência de um suposto saber, pela via do imaginário que se inicia uma análise.

Lacan (1964) a partir dessa proposta afirma que cada analista deve ter o seu estilo próprio, com sessões baseadas no tempo lógico e não cronológico, manejando o dinheiro de forma simbólica a cada analisando, e principalmente que o analista se autoriza por si mesmo, diferente da posição da IPA na época, que preconizava que para ser analista somente poderia sê-lo se seguisse padrões estabelecidos pela IPA e realizasse analise com um analista didata.

A interpretação em Lacan (1953B) é baseada nos pontos de basta na cadeia significante, ou seja, o corte analítico é no momento em que surge o inconsciente a partir da fala plena, o corte faz surgir o intervalo entre os significantes, intervalo em que emerge o sujeito do desejo. A psicologia do ego realiza interpretações através dos mecanismos e defesa do ego.

A psicanálise é uma práxis e a formação daquele que irá praticá-la é baseado em um tripé, ou seja, a união de três pilares fundamentais que serão base para o início e continuidade da formação do analista. Freud, em seu texto sobre “A questão da análise leiga: diálogo com um interlocutor imparcial” (1926), abordou as bases do tripé para a formação do analista, que consiste na análise individual, na supervisão e na continuidade dos estudos teóricos, justificando que se o aspirante a analista segue esse tripé ele teria todos os elementos que lhe podem torna-lo um analista de fato. Vale ressaltar que o tripé favorece ao analista uma mudança interna, fator é indispensável para a formação. Lacan (1958) reafirma esse tripé necessário ao analista e acrescenta a necessidade da escrita psicanalítica, da atuação clínica e da transmissão da psicanálise, a psicanalise como sendo transmitida e não aprendida, por isso, propõe grupo de estudos, cartéis, dentre outros.

O tripé proposto por Freud dá base e sustentação à postura do analista, porém somente esses elementos não são suficientes para haver análise ou analista. Na análise somente se tem um analista se há transferência, ou seja, se o analisando endereça os seus afetos recalcados infantis na figura do analista. Para ser analista precisa criar um espaço para que se propicie a transferência, e estar nesse contexto requer do analista se despojar dos seus afetos internos, e dessa forma o analisando pode endereçar os seus afetos e reatualizá-los pela neurose de transferência.

Nesse contexto, Lacan (1956), enfatiza os conceitos apresentados por Freud, criticando a visão equivocada de outros autores da sua técnica proposta, principalmente no retorno aos conceitos fundamentais e na postura do analista. Lacan (1964) enfatiza a questão da linguagem significante, sendo fator central da constituição do sujeito, fato enfatizado por Freud em seus textos sobre chistes, lapsos de linguagem, ato falho, sonhos, dentre outros. Partindo da linguagem Lacan (1964) explicita que na constituição do sujeito há um simbólico formado a partir de cadeias significantes estruturadas na infância. O psíquico como cadeia simbólica, se apresenta de forma que há primazia do significante, ou seja, o sentido muda a partir do par significante, um significante sozinho não tem sentido, por isso, nesse contexto se inscreve a necessidade de um analista como par significante do analisando.

Para Lacan (1956) não deve haver uma postura intelectualizada do analista, o analista não deve responder a tudo, não pode suprir as angústia do analisando. Pelo contrário, o analista deve se por em posição de causa de desejo, ou seja, posição de objeto a. Estar na posição de objeto a é justamente dispor de seus afetos internos, e estar vazio para que o analisando possa endereçar os seus conteúdos, tendo lugar de sujeito. A postura do analista é contraria posição narcísica, posição imaginária de completude, pois, se completa não há espaço para surgir os conteúdos do analisando, é necessária a falta partindo do analista.

Lacan (1956), assim como Freud, ressalta que é indispensável ocorrer à transferência para haver uma análise, e para haver a transferência é necessário o analisando ter espaço para endereçar seus conteúdos ao analista. Lacan ressalta a necessidade de uma ignorância dolta, que explicita que o saber vem do analisando e não do analista.

O manejo da transferência deve se dar a partir de uma ética, que permite ao sujeito emergir os seus conteúdos e que se encontre com seus significantes. A estratégia deve ser própria de cada analista, cada analista tem uma forma de manejar a transferência com cada analisando, o analista é aquele que definirá o estilo de atuação (Pimenta, 2021).

O método analítico para Freud (1905) é o que tem efeito mais penetrante e maior alcance, mediante o qual se obtém a mais substancial mudança do sujeito. Para que a técnica tenha esse efeito é necessário ao analista seguir uma técnica que vai além de obedecer a pré-requisitos, consistindo em um ofício de suposto saber, o analista sempre irá supor saber (Lacan, 1964).

O analisando não fala sobre si para qualquer pessoa, ele escolhe alguém com quem falar, e essa escolha é inconsciente. Pela neurose da transferência pode-se reatualizar na figura do analista as figuras parentais da infância, e com essa reatualização pode-se começar um processo de ressignificação. É importante salientar que antes existe uma transferência de saber que antecede a neurose de transferência desenvolvida na análise. A transferência de saber ocorre na escolha do analista, ou seja, quem o analisando acredita que irá saber sobre ele (Lacan, 1964).

Para Lacan (1952) cada analista precisa se autorizar por si mesmo, escolhendo para si o seu estilo, por isso ser analista trata-se de um ofício, pois não há parâmetros exatos de como tornar-se analista, o analista está sempre no vir-a-ser para que o analisando possa estar no falta-a-ser.

Freud (1900) propõe como técnica fundamental da psicanálise a associação livre, que refere-se ao paciente falar o que vier à mente sem nenhum filtro ou julgamento. Lacan (1964) retrata a associação livre como não sendo livre, pois a associação livre parte do que está recalcado no sujeito, parte de seus significantes.

O analista deve promover a associação livre e conduzindo a análise de forma que emerge o que há de inconsciente no sujeito, Freud (1900) utilizou da interpretação principalmente ressaltada as figuras parentais, nesse aspecto Lacan realça a interpretação com função de corte. Este corte ocorre no momento em que surge um conteúdo inconsciente manifesta-se ao qual deve-se ter atenção.

O inconsciente tem suas próprias leis, como Freud (1900) conceituou a lei da condensação e do deslocamento. Lacan (1964) traduziu esses conceitos respectivamente como metáfora e metonímia. São por essas leis que o inconsciente se manifesta na análise. Nesse momento deve ocorrer o corte analítico, que age como um ponto de basta, que tem por objetivo retroagir em etapas mais precoces da vida infantil. Sem o corte a manifestação inconsciente é submetida novamente à resistência.

Por fim, podemos afirmar que a psicanálise é singular, assim como o ofício para ser analista é singular. Cada análise tem sua particulariedade, ou seja, a análise sendo formada por dois significantes, o analista e o analisando. A construção de uma análise não é fácil, a muito do que o analista precisa fazer, é necessário ocorrer à transferência, e o mais difícil é o analista se despir do seu eu.

REFERÊNCIAS

FREUD, S. (1900), A interpretação dos sonhos. Obras completas / tradução e notas Paulo Cesar de Souza – São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

FREUD, S. (1926). A questão da análise leiga: dialogo com um interlocutor imparcial. In: Freud, S. Inibição, sintoma e angustia o futuro de uma ilusão e outros textos. Obras completas / tradução e notas Paulo Cesar de Souza – São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

FREUD, S. (1905). Psicoterapia. In: Freud, S. Três ensaios sobre a sexualidade, análise fragmentaria de uma histeria (“O caso Dora”), e outros textos. Obras completas / tradução e notas Paulo Cesar de Souza – São Paulo: Companhia das Letras, 2016. 2)

LACAN, J. (1958). A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: LACAN, J. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998.

LACAN, J. (1953A). Discurso de Roma. In: LACAN, J. Outros escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2003.

LACAN, J. (1953B). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: LACAN, J. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998.

LACAN, J. (1963). Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

LACAN, J. (1998). Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956. J. Lacan, Escritos, 461-495. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2008.

PIMENTA, A. C. (2021). A ética do desejo e a política da faltaThe ethic of desire and the policy of lack. Reverso,  Belo Horizonte ,  v. 34, n. 64, p. 15-23, dez.  2012. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-73952012000300002&lng=pt&nrm=iso>. acessos em  24  out.  2021.

[1] Psicanalista, Psicóloga, Pedagoga, Psicopedagoga, Licenciada em Ciências Sociais, Especialista em psicanálise e especialista em psicanalise com crianças e adolescentes. ORCID: 0000-0002-0281-4636. CURRÍCULO LATTES: https://lattes.cnpq.br/4771597833717032.

[2] Doutora em Psicologia, Psicóloga, psicanalista, coordenadora do curso de formação em psicanálise do Núcleo Brasileiro de Pesquisas Psicanalíticas. ORCID: 0000-0002-1391-8553. CURRÍCULO LATTES: http://lattes.cnpq.br/7927521064843725.

Najla Gergi Krouchane

Najla Gergi Krouchane

Psicanalista, Psicóloga, Pedagoga, Psicopedagoga, Licenciada em Ciências Sociais, Especialista em psicanálise e especialista em psicanalise com crianças e adolescentes. ORCID: 0000-0002-0281-4636. CURRÍCULO LATTES: https://lattes.cnpq.br/4771597833717032.

Uma resposta

  1. Artigo que trouxe, nesta minha caminhada pelo caminho de formação em psicanálise, entendimento.

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