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Contribuições da espiritualidade para saúde mental: um estudo da prática da umbanda

RC: 153107
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DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/ciencia-da-religiao/contribuicoes-da-espiritualidade

CONTEÚDO

ARTIGO DE REVISÃO

NASCIMENTO, Sabrina Maria Batista do [1]

NASCIMENTO, Sabrina Maria Batista do. Contribuições da espiritualidade para saúde mental: um estudo da prática da umbanda. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 09, Ed. 05, Vol. 02, pp. 80-94. Maio de 2024. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/ciencia-da-religiao/contribuicoes-da-espiritualidade, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/ciencia-da-religiao/contribuicoes-da-espiritualidade

RESUMO

O presente artigo traz em relevo a Umbanda por considerá-la, como o Candomblé, uma das mais relevantes religiões originadas no Brasil, junto ao seu notório sincretismo com Cristianismo, Espiritismo e mais liturgias dos africanos aqui escravizados. Diante disso, pretende-se assinalar como sua prática, por meio de seus respectivos ritos e crenças, pode inspirar espiritualmente as pessoas ao realçar nelas valores como compaixão, solidariedade e autoconhecimento, influenciando-as a desenvolverem capacidades de enfrentamento saudáveis, em conjunto ao exercício da caridade e do apoio aos necessitados, com atividades significativas que contribuem de uma forma mais assertiva com a autoestima dos seus adeptos e demais envolvidos. Ao conduzir este por meio de uma revisão da literatura de caráter qualitativa, espera-se colaborar ainda com o combate ao vigente preconceito frente às religiões de nítida ascendência africana e para uma compreensão mais ampla da relação entre espiritualidade, religião e saúde mental, fornecendo insights importantes para os profissionais da respectiva área e outros pesquisadores interessados no tema.

Palavras-chave: Religião, Saúde Mental, Umbanda.

1. INTRODUÇÃO

É sabido que Organização Mundial da Saúde (OMS) reafirma esta como sendo um “completo bem-estar físico, mental e social, não meramente a ausência de doença” e, por conseguinte, que qualidade de vida, estando relativa àquela, seja a “[…] percepção do indivíduo de sua posição na vida, contexto da cultura e sistema de valores nos quais vive em relação aos seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações” (Fleck, 2000, p.34). Nesse conjunto, a interação entre saúde mental, religiosa e espiritual tem obtido cada vez mais destaque e, assim, consolida-se o porquê deste artigo.

Corroborando tal premissa, Koenig (2012) afirma que vários pacientes possuem crenças que julgam importantes para os cuidados em saúde; que as convicções religiosas afetam nas decisões pessoais e podem se tornar elementos de resistência na eficácia aos tratamentos psicoterápicos; que as religiões facilitam na persuasão das relações entre as pessoas e o meio social; que muitos pacientes apresentam as necessidades espirituais relacionadas a inúmeros fatores que são capazes de afetar sua saúde mental e que, por isso, tais demandas precisam ser acolhidas.

Diante disso é que se vem a ressaltar a importância de se levar em consideração a espiritualidade e a religiosidade na qualidade de vida das pessoas, podendo a omissão diante disso ter efeitos nocivos para elas. Para tanto, há a necessidade aqui de se explorar a relação entre essas variáveis por meio de uma revisão da respectiva literatura que envolve o assunto (Koenig, 2012). E assim foram delineados os seguintes objetivos específicos:  Definir o conceito de religiosidade e espiritualidade e também suas intercessões naquilo que tangenciam a saúde mental e qualidade de vida dos indivíduos.

Determinado trabalho está aqui realizado por meio de consultas em livros e na base de pesquisa na internet através das bibliotecas digitais SciElo, CAPES Periódicos, Portal Regional da BVS, portanto, prioritariamente pelas bibliotecas digitais de livre acesso e modelo cooperativo de publicações digitais de periódicos científicos produzidos entre 2010 e 2023.

2. ESPIRITUALIDADE E RELIGIOSIDADE

A espiritualidade é um termo que possui uma extensa e relevante contribuição ao longo da história e amadurecimento do campo científico e acadêmico, embora bastante dissonante. Ela pode ser entendida a priori como uma busca de respostas para o sentido da vida na sua ligação com o transcendente, enquanto a religiosidade se trata de um conjunto estruturado de práticas, crenças, rituais e símbolos que colabora para a proximidade do indivíduo não só com o transcendente mas também com o ente divino mais específico (Koenig, 2012).

Assim, ambas implicam na busca por uma transcendência, podendo a espiritualidade também englobar elementos como fé, busca de significado, conexão com o divino e práticas destinadas a cultivar essa conexão. Contudo ela se mostra mais direcionada ao individual; enquanto a religiosidade está ligada a tradições religiosas próprias e suas bases organizadas (Mazzarolo, 2011). Entre uma e outra, cada pessoa pode abordar suas práticas e conceitos de maneira única, com base em suas crenças e experiências pessoais, mas a segunda possui um status mais institucional.

Uma das principais figuras na exposição da espiritualidade, William James (1995), ressalta que a religião se dá por um conjunto de sentimentos, atos e experiência do homem individualmente a algo que considera como divino (Miller; Thoresen, 2003). Essa definição proporciona à espiritualidade certa religiosidade, e ignora a religião institucional. Já segundo Angerami-Camon (2002), a religiosidade constitui-se na procura do homem por transcendência e é um dos meios em que ele pode experienciar a sua espiritualidade.

Já para Murakami e Campos, a espiritualidade caracteriza-se como um sentimento íntimo existencial, uma busca pelo sentido de viver e se situar no mundo e não absolutamente estará ligado à crença em algo maior, como um Deus. Já a religiosidade, pode ser compreendida como sendo um composto de crenças e práticas relacionadas a uma doutrina, que são divididas e seguidas por um conjunto de pessoas através de cultos e rituais que contenham necessariamente a noção de fé (Murakami; Campos, 2012).

Esses estudos demonstram uma certa dificuldade de se diferenciar completamente uma coisa da outra, mas o que se tem em comum é o fato de que as pessoas, ao lidarem com grandes estressores da vida como desastres naturais, doenças, perda de entes queridos, divórcio e doenças graves, mostram que tanto a religião quanto a espiritualidade são geralmente úteis, indiferente às suas classes sociais. Elas pessoas podem recorrer a muitos recursos metafísicos, vinculados a um mais bem adequado ajuste em tempos de crise, como métodos de enfrentamento que incluem apoio de um ente ou outro dito poder superior como símbolos ou ritos para facilitar as transições da vida, perdão espiritual, apoio de uma instituição religiosa e reformulação de uma situação em busca de outra mais benevolente.

Por outro lado, algumas passagens podem ser mais problemáticas, pois alguns eventos podem aniquilar não só no campo espiritual, mas também psicológico, social e físico. Um crescente corpo de pesquisa ligou tais demandas a níveis mais altos do sofrimento, incluindo nele um maior risco de morte. Dessa forma, fez-se crucial que junto aos agentes espirituais se juntassem outros como psicólogos e profissionais de saúde, com todos estando conscientes da dualidade da natureza humana que abrange o empírico e o metafísico, como veremos no tópico a seguir.

2.1 ESPIRITUALIDADE, RELIGIOSIDADE E CLÍNICA

Por vários anos, estudos de cunho mais acadêmicos evitaram propriamente a religião e a espiritualidade na prática clínica, possivelmente pelo determinismo científico de suas teorias predominantemente europeias. Para Freud (1976), os ideais religiosos não contemplam as expectativas da humanidade, por não terem sido comprovados de forma científica, caindo em descrédito. A Ciência e a Religião ocupam universos epistêmicos distintos: quando uma prevalece, outra desaparece. Mesmo que a religião tenha como função o de aliviar o desamparo, dar significado à vida, controlar impulsos e abster-se dos prazeres terrenos, com a perspectiva de possíveis recompensas em uma vida futura após a morte, a ciência veria isso não como solução, mas parte do problema.

Segundo Skinner (1974), por sua vez, a religião denomina-se como uma agência de controle que parte de uma “conexão” com o sobrenatural, acerca disso podendo criar ou alterar certas contingências. Para ele, a religião seria principalmente como um fenômeno comportamental passível de ser estudado e analisado a partir de princípios da psicologia comportamental. Ele argumentava ainda que a religião envolve uma série de comportamentos observáveis, como orações, rituais, crenças e interações sociais, sendo que tais comportamentos poderiam ser entendidos e explicados em termos de reforçadores e punidores, baseando-se na sua corrente behaviorista: uma visão dos seres humanos como programados, predeterminados e sem livre-arbítrio.

Ainda a título de exemplos: Jung realizou diversos estudos sobre representações arquetípicas na religião em sua complexa análise dos mitos e ritos iniciáticos. Para Jung (1986), o estudo do sofrimento psíquico era ilibado, pelo abandono da religião e pela ausência de direcionamento espiritual, sendo um dos psicólogos mais citados no estudo da ciência da religião. Chegou a afirmar que uma pessoa de meia-idade, só se reestabeleceria ao recuperar sua orientação espiritual perante a vida. Maslow (1990), por sua vez, não se interessava muito pelas formas mais tradicionais da religiosidade, mas pelos valores exclusivamente espirituais. Dizia que o ser humano tem uma “necessidade cognitiva de compreender” e devido a isso requer uma base de valores, uma filosofia de vida, alguma crença como guia para sua vida.

Diante disso, muitos psicólogos já se veem eticamente obrigados a respeitarem e estarem atentos à diversidade cultural de seus clientes, levando em conta que a religião e a espiritualidade contribuem para nossas identidades pessoais e sociais, já que também pesquisas emergentes mostram que as abordagens de tratamento espiritualmente integradas são tão eficazes quanto outros tratamentos. Há, em suma, boas razões cientificamente fundamentadas para sermos mais sensíveis à metafísica do nosso entorno, ao disseminar vitalidade e sentidos a diversas circunstâncias da vida.

Em conformidade a isso, Murakami e Campos (2012) afirma ser a religião um fator importante de significado na vida das pessoas, pois as adversidades espirituais, afetivas e sociais são demandas relevantes no dia a dia dos indivíduos, incluindo nelas os problemas de saúde, que são muitas das vezes os principais motivos pelos quais as pessoas recorrem às igrejas, santuários, com suas crenças espirituais e religiosas como “pronto socorro de atendimento integral”, buscando pelo alívio de seu sofrimento.

Além disso, mesmo que se conceba a fé como uma provisão sobrenatural, ela é capaz de intervir de maneira favorável no sofrimento por meio de emoções positivas diante do efeito benéfico da produção de endorfina: hormônio responsável pela sensação de bem-estar, o que faz com que as pessoas se sintam mais fortes para lidar e enfrentar as dificuldades do seu cotidiano (Murakami; Campos, 2012). Nesse contexto, a religiosidade pode influenciar e motivar, também de maneira positiva, idosos a terem atitudes mentais e comportamentos que os ajudem a prevenir e a lidar com os sintomas depressivos, algo tão comum nessa fase da vida (Koenig, 2012).

Ainda segundo Koenig (2012), acreditava-se que as crenças e práticas religiosas dos pacientes tenham uma base patológica e os psiquiatras por mais de um século as entenderam sob essa luz, sendo as experiências negativas do passado com a religião particularmente importantes, incluindo decepções causadas por orações não respondidas, grandes perdas de expectativas ou conflitos com o clero ou outros membros da igreja. As crenças e atividades religiosas dos pacientes devem ser exploradas, bem como sua participação em uma comunidade religiosa, quão ativos eles sejam, quanto apoio recebem e se essa comunidade se opõe a algum tratamento. (Battistella, Masiero, Saad, 2001; Alves, 2015; Alves et al., 2010).

Não é incomum que determinadas crenças possam entrar em conflito com o tipo de terapia escolhida e condenar está ao fracasso, portanto, fazer uma história espiritual é especialmente importante para pacientes devotamente religiosos, sobretudo quando há de se aplicar antidepressivos ou outras drogas psiquiátricas, já se levando em conta que determinadas aversões podem afetar adversamente a adesão e o seguimento do tratamento (Koenig, 2012).

Mesmo que o paciente não seja religioso, o psiquiatra deve sondar gentilmente para obter uma melhor compreensão das experiências anteriores do paciente com seus valores morais e sociais. Experiências que podem ter afastado o paciente da religião (como abuso sexual por parte do clero ou um evento traumático que alterou sua visão de mundo) podem estar contribuindo para problemas psiquiátricos atuais. Quando as crenças religiosas estiverem contribuindo ou se entrelaçando com a psicopatologia, uma postura respeitosa, neutra, é melhor inicialmente. Em algum momento, no entanto, pode ser necessário desafiar gentilmente as crenças que estão sendo usadas defensivamente para evitar mudanças importantes na vida ou nas atitudes. Esse é um aspecto arriscado e não deve ser tentado até que uma aliança terapêutica firme tenha sido estabelecida, inclusive, se o paciente consentir, uma conversa com o clero do paciente, antes de se abordar diretamente suas crenças, pode ser útil (Koenig, 2012).

A prece com um paciente religioso também pode ter um poderoso efeito e fortalecer a tal aliança terapêutica. Isso, no entanto, pode ser uma intervenção perigosa e nunca deve ocorrer até que o psiquiatra tenha uma compreensão completa das crenças religiosas do paciente e experiências anteriores com a religião. A oração só deve ser feita se o paciente iniciar um pedido, o psiquiatra se sentir confortável para cumpri-lo e se as origens religiosas do paciente e do psiquiatra forem acordadas. Mesmo que todas as condições adequadas estejam presentes, haverá alguns pacientes para quem a oração apresentar-se-á como intrusiva, muito pessoal, o que poderia violar delicados limites profissionais. A prece nunca deve ser uma questão de rotina. O momento e a intenção devem ser planejados cuidadosamente com objetivos claros em mente (Koenig, 2012), sobretudo quando se tem em questão uma religião envolta em tabus, como os segmentos neopentecostais, ou fortes preconceitos vigentes, como a de que falaremos adiante.

2.2 UMBANDA: UM BREVE PERCURSO

A Umbanda é uma religião eclética e pragmática, consolidou-se no final da década de 1920, misturando Catolicismo popular, animismo afro-brasileiro e Espiritismo, sendo a única religião verdadeiramente brasileira. As primeiras bases da Umbanda chegaram ao Brasil com colonizadores portugueses e escravizados africanos (Jensen, 2001). Sabe-se que as religiões destes se misturaram e evoluíram nas sombras da sociedade branca dominada por cristãos, porém a Umbanda é um termo do kikongo, língua bantu nativa de Angola e pode ser traduzido como “a arte de curar”. Isso se deve ao fato de que inicialmente fazia parte da “magia” com que os curandeiros africanos curavam seus semelhantes, a partir de sua religação com uma ordem cósmica (Mendonça Júnior, 2010).

Devido à sua natureza sincrética, a Umbanda tem inúmeros pontos de contato com outras religiões e suas divindades muitas vezes coincidem em representação, associações ou dias de culto com as aparições da santa virgem cristã ou com membros dos santos católicos. No que diz respeito a sua origem africana, a Umbanda tem pontos de encontro com outras liturgias oriundas daquele continente, como a Macumba[2], o Candomblé[3], e a adoração a Xangô[4] ou mesmo com religiões de etnia iorubá do Caribe, mas não deve ser confundida com nenhuma delas (Gomes, 2021).

Em seu artigo  As práticas de cura na Umbanda em Redenção, Lima (2016), dedicou um capítulo sobre as tais e explica que a umbanda como religião prega a benevolência e a caridade, suas práticas são voltadas ao tratamento gratuito, onde o atendimento se baseia no comportamento moral de cada Pai Santo ou as peculiaridades de cada ritual realizado, ficando a critério do sujeito que recebe o tratamento ou solução a questão de dar ou não dar oferendas como forma simbólica de gratidão pelo seu sucesso na resolução do seu problema. Juruá (2013, p. 28) refere-se às palavras do Caboclo das Sete Encruzilhadas, ao anunciar a Umbanda como “[…] prática da caridade no sentido do amor fraterno, será a característica principal deste culto, que tem base no Evangelho de Jesus e como Mestre Supremo Cristo”, conforme sincretismo aqui já apontado.

Ainda assim, os preconceitos e as perseguições persistem, mesmo após a Constituição Federal de 1988 ter reafirmado o princípio de Laicidade do Estado. Por meio dela estaria garantido o direito à liberdade de qualquer culto e/ou religião, ao mesmo tempo em que o proíbe em seu art. 19, inciso 1, que o Estado estabelecerá aliança ou dependência com qualquer organização de culto e obstruirá o funcionamento de qualquer organização de culto de qualquer natureza. O mesmo acontecendo no art. 5.º, VI, Direitos e Garantias Fundamentais, ao estipular a liberdade de crença, a liberdade de culto e a liberdade de organizações religiosas.

Para Oro (2007), nas últimas décadas observa-se manifestações de intolerância contra as religiões afro-brasileiras entre o meio religioso com o surgimento das religiões neopentecostais. Utilizam-se dos meios de comunicação para difundir a ideia de que a grande causa do mal neste mundo se deve à existência de demônios, quase sempre associados às religiões de matrizes afro-brasileiras.

Para reafirmar sua relevância prática e simbólica, as casas de culto adotaram estratégias como a filiação de Federações legalmente constituídas, mantendo uma  assessoria jurídica; uma associação permanente ao movimento negro; a realização de seminários e congressos com a colaboração de cientistas, artistas e de sacerdotes de outras religiões; uma ampla divulgação em  programas de rádio, de televisão, e a publicação de livros e artigos divulgando as religiões afro-brasileiras e, assim, combater o preconceito e a discriminação contra elas (Mundicarmo, 2019).

2.3 UMBANDA COMO TERAPIA

No Brasil, a relação entre saúde mental e religião é antiga. A partir do final do século XIX, os médicos, em sua maioria psiquiatras, desenvolveram um grande interesse pelos cultos afro-brasileiros, tratava-se de determinar até que ponto essas práticas, em grande parte originárias da África, poderiam afetar a saúde mental dos ex-escravos e seus descendentes. Até a década de 1930, esses cultos, assim como algumas outras religiões minoritárias, foram uma preocupação igualmente central de

“higiene” para grupos médicos que trabalhavam em Salvador e no Recife (Magnani, 2002).

Nesse universo religioso, a saúde mental é considerada de duas formas, pode ser um mau relacionamento com as entidades sobrenaturais que compõem o panteão dos cultos e, nesse caso, elas vêm perturbar o quotidiano da pessoa que terá de as conciliar através de uma série de rituais sacrificiais de várias ordens para que o equilíbrio seja restabelecido, conquanto as desordens também possam resultar da ação nociva de pessoas do entorno que estão zangadas com o indivíduo em questão e que “manipularam” forças negativas contra ele (Silva, 2007).

Quanto ao primeiro caso, existem vários graus de relação entre o sujeito e o ser invisível que lhe cria problemas. No caso de um simples “simpatizante”, os distúrbios são considerados pelos que pertencem aos cultos como o sinal inequívoco de que uma entidade sobrenatural exige que a pessoa se submeta a uma iniciação. Se a pessoa é “iniciada”, ou seja, já estabeleceu uma relação privilegiada com uma entidade, os seus problemas são atribuídos pelos que a rodeiam e, por vezes, por si próprio, ao facto de não ter cumprido os deveres incumbidos a ele vis-à-vis por seu protetor. Ele deve, nesse caso, fazer sacrifícios expiatórios para conciliar o perturbador. Estes geralmente consistem em oferendas em espécie que serão processadas ritualmente pelo líder do culto para restaurar um relacionamento pacífico entre o protegido e seu guia (Santos, 1999).

Segundo Segato (1995), a eficácia psicológica dessa gama de práticas mágico-religiosas é geralmente proporcional ao grau de participação em uma comunidade afro-brasileira (ou terreiro) que seria aceitável para o indivíduo, pois é por meio dessa participação consistente que os dispositivos de fé se instalarão e facilitarão a manipulação da psique por meio da manipulação de imagens discursivas. Para o mesmo autor, os terreiros representam uma continuação da vida social, onde há a integração das pessoas presentes no ritual de cura, como paciente, público, e médium, esse último responsável pelo contato com a entidade durante os rituais.

Apesar de percepções aparentemente divergentes, o campo psiquiátrico e o campo religioso continuam tendo o objetivo comum de aliviar o sofrimento e ajudar as pessoas a vivenciarem da melhor maneira possível as mazelas da condição humana. O campo psiquiátrico geralmente se baseia em princípios da Psicologia, Neurociência e Medicina para compreender e tratar distúrbios mentais e emocionais. Isso pode envolver o uso de terapia, medicamentos e outras intervenções baseadas em evidências científicas; já o campo religioso oferece apoio espiritual e emocional, buscando aliviar o sofrimento por meio da fé, da comunidade religiosa e de práticas rituais. A espiritualidade é uma fonte significativa de apoio e abordagem aos desafios, pois a fé e a participação em práticas religiosas são capazes de oferecer conforto, esperança e um senso de propósito. Ela e a psiquiatria podem ser complementares com as pessoas podendo buscar tratamento tanto em um campo quanto em outro, sem que necessariamente a ciência exima a crença e vice-versa, pois o que importa mesmo seria a qualidade de vida do indivíduo.

É sabido ainda que o conceito de qualidade de vida foi inserido na medicina em uma época quando os termos médicos tradicionais, como mortalidade e morbidade, estavam sendo criticados por possuírem um foco muito restrito. Devido a isso, não conseguiam representar um bom número de outros termos potenciais, que também possuem relevância para a medicina e para outras áreas (Fleck, 2000).

No seu sentido geral, qualidade de vida é uma nomenclatura que se aplica ao indivíduo aparentemente saudável. Refere-se “ao seu grau de satisfação com a vida nos seus inúmeros aspectos que consistem em moradia, transporte, alimentação, lazer, satisfação, realização profissional, vida sexual e amorosa, relacionamentos com outras pessoas, liberdade, autonomia e segurança financeira” (Fleck, 2000, p.35).  Avaliar a qualidade de vida dos indivíduos tem despertado a atenção de muitos pesquisadores e tal prática tem sido muito utilizada na área de saúde (Fleck, 2000).

A partir da década de 1960, a opinião dos indivíduos a respeito de sua própria vida passou a ser valorizada, é necessário e fundamental avaliar o quanto a pessoa está satisfeita ou insatisfeita com os aspectos percebidos de sua vida. É de grande importância levar em consideração que, para se falar sobre qualidade de vida, são muitos os fatores relacionados com a vida (Fleck, 2000).

3. CONCLUSÃO

Este estudo demonstra como a Umbanda pode contribuir para a saúde mental, espiritual e física, destacando uma série de maneiras pelas quais as práticas espirituais e os princípios da referida religião conseguem impressionar favoravelmente o bem-estar dos seus praticantes, ao oferecerem um ambiente que promove a conexão com o transcendente, o apoio emocional e a construção de uma identidade espiritual sólida.

Os rituais praticados e a crença na comunicação com entidades espirituais proporcionam um ambiente para lidar com emoções complexas, como a perda e o luto, providenciando um método alternativo de entender e processar essas experiências, os relacionamentos saudáveis consigo mesmos e com os outros, colaborando para uma base de superação consistente.

A Umbanda não apenas oferece um sistema de crenças, mas também oportunidades práticas para que seus adeptos se envolvam em ações de importância por meio da caridade e do auxílio aos necessitados. Determinado envolvimento ativo não só aumenta a autoestima, mas também oferece uma percepção palpável de propósito, reduzindo potencialmente os sintomas de ansiedade e depressão. Contudo, seja imprescindível reconhecer que a relação entre religião e saúde mental é relevante e variada, ainda que as experiências individuais possam ser discordantes. É importante evitar generalizações reducionistas, ao se reconhecer que a Umbanda, como qualquer sistema de crenças, pode ter impactos diferentes em diferentes pessoas.

O encontro entre espiritualidade e saúde mental continua sendo um campo de pesquisa favorável, mas também desafiador. Os profissionais de saúde devem abordar essa área com sensibilidade cultural e respeito pelas crenças e práticas individuais. Assim, podem colaborar de maneira eficaz com o combate ao preconceito vigente com relação aos praticantes da Umbanda e outras denominações que não possuem o mesmo prestígio das religiões cristãs.

Desta forma, este estudo destaca que a Umbanda desempenha um papel significativo no contexto da saúde mental, oferecendo um panorama holístico que considera não apenas a mente, mas também o espírito e a comunidade, à medida que continuamos a explorar a intersecção entre religião, espiritualidade e bem-estar físico e psicológico como fundamental se adotar uma abordagem inclusiva que reconheça a diversidade de caminhos para a cura e a realização pessoal.

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NOTA

Nosso relatório identificou a presença de inteligência artificial para correção gramatical e ortográfica. No entanto, o autor informou que não a utilizou. O autor se responsabiliza pelo material.

APÊNDICE – NOTA DE RODAPÉ

2. Forma pejorativa e imprecisa para se referir a diversas práticas religiosas afro-brasileiras e espiritualistas. Essas práticas têm raízes nas tradições africanas, especialmente na região da África Ocidental, e foram trazidas para o Brasil durante o período da escravidão.

3. Religião afro-brasileira que tem origens nas tradições religiosas africanas, sobretudo na região da África Ocidental. Esta religião evoluiu no Brasil ao longo do período da escravidão, quando africanos e seus descendentes juntaram-se para preservar suas crenças e práticas espirituais.

4. Xangô é uma das divindades ou Orixás venerados nas religiões afro-brasileiras, como o Candomblé e a Umbanda. Ele é uma figura importante e reverenciada nestas tradições religiosas, e sua influência se estende para várias áreas da vida e da natureza.

[1] Mestrando em Ciências das Religiões pela Faculdade Unidas de Vitória – FUV. Especialista em Docência em Ensino Superior pela Faculdade Facuminas – 2024. Especialista em Enfermagem Estética pela Faculdade Nepuga – 2021. Especialista em Enfermagem do Trabalho pela Universidade Cândido Mendes – 2017. Especialista em Atenção Primária à Saúde pelo Centro Universitário do Espírito Santo – Unesc – 2010. Especialista em Conduta de Enfermagem no Paciente Crítico pelo Centro Universitário do São Camilo – 2006. ORCID: 0009-0005-4506-8185. Currículo Lattes: https://lattes.cnpq.br/5756983434836759.

Material recebido: 13 de julho de 2023.

Material aprovado pelos pares: 21 de novembro de 2023.

Material editado aprovado pelos autores: 04 de junho de 2024.

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Sabrina Maria Batista do Nascimento

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