RELATO DE CASO
SILVA, Irlan Silva e [1], MEMÓRIA, Thiara Castro de Oliveira [2]
SILVA, Irlan Silva e. MEMÓRIA, Thiara Castro de Oliveira. Carcinoma Hepatocelular Atípico: um relato de caso. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 10, Ed. 03, Vol. 01, pp. 37-46. Março de 2025. ISSN: 2448-0959, Link de acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/saude/carcinoma-hepatocelular-atipico, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/saude/carcinoma-hepatocelular-atipico
RESUMO
Objetivo: Relatar um caso de Carcinoma Hepatocelular com apresentação atípica. Relato do caso: Paciente feminina, 30 anos, apresentando quadro diarreico, associado a muco sem sangue, evoluindo com aumento do volume abdominal e plenitude gástrica, dor na região epigástrica irradiando para o hipocôndrio esquerdo, associado a perda ponderal de 15 quilos em 4 meses. Marcadores virais para hepatite B e C negativos, realizou tomografia do abdome que evidenciou volumosa formação expansiva sólida heterogênea no lobo hepático esquerdo, medindo 19 x 11 x 20 centímetro, com predomínio de conteúdo hipodenso e áreas de densidade semelhante a gordura, bem como intensa vascularização e realce após o uso do meio de contraste endovenoso. A terapêutica realizada foi hepatectomia do lobo esquerdo, apresentando o histopatológico da peça cirúrgica o diagnóstico de Carcinoma Hepatocelular moderadamente diferenciado. Conclusão: O Carcinoma Hepatocelular é o tumor primário maligno mais comum do fígado, frequentemente associado a cirrose e com apresentação típica, entretanto apresentações atípicas são um desafio diagnóstico e podem retardar o tratamento oportuno.
Palavras-chaves: Carcinoma Hepatocelular, Hepatocarcinoma, Apresentação Atípica.
1. INTRODUÇÃO
O Carcinoma Hepatocelular (CHC) ou hepatocarcinoma é o tumor primário maligno mais comum do fígado e cerca de 90% dos pacientes com esse tumor são portadores de alguma forma de hepatopatia crônica, com maior incidência no sexo masculino na faixa etária entre de 50 e 60 anos de idade1,2. É a sexta doença maligna mais diagnóstica no mundo, com importante aumento da sua incidência, tornando-se a terceira causa mais comum de mortalidade relacionada ao câncer3. Sua incidência e prevalência global se relaciona principalmente à infecção crônica pelo vírus da Hepatite B (VHB), sendo a maior número de casos no sudeste da Ásia e na África tropical; e o menor número na Austrália, América do Norte e Europa.
O aumento da prevalência das hepatites virais tem impactado diretamente no aumento da incidência do hepatocarcinoma na nossa população4,5. Nesse contexto, os exames de imagem têm despontado como uma ferramenta essencial no rastreio, diagnóstico e seguimento desses pacientes. Ademais, os aspectos de imagens do hepatocarcinoma são bem conhecidos e quando associados a sinais de hepatopatia crônica, permitem um diagnóstico bastante específico e seguro2,6. Entretanto, apresentações atípicas em pacientes hígidos são um verdadeiro desafio diagnóstico, o que pode retardar o tratamento oportuno.
O CHC tem como principais diagnósticos diferencias o hemagioma, a Hiperplasia Nodular Focal (HNF) e o adenoma hepático10. Sendo o adenoma um tumor raro benigno que pode sofrer degeneração maligna, mais frequente em mulheres na idade fértil, associado ao uso de anticoncepcionais orais e que tende a causar maior sintomatologia7,8,9. Vale ressaltar que cerca de 20% dos CHCs tem apresentações incomuns6.
Assim, apresentamos um caso de CHC volumoso em uma paciente de 30 anos, sem histórico de infecção crônica por hepatites ou outras doenças hepáticas prévias, bem como sem o relato de uso de Anticoncepcionais Orais.
2. OBJETIVO
Relatar um caso de Carcinoma Hepatocelular com apresentação atípica em uma paciente sem histórico de doença hepática prévia.
3. RELATO DE CASO
Paciente do sexo feminino, 30 anos, casada, natural de Guimarães-MA e residente em São Luís-MA, Brasil. De antecedentes, fez uso do metimazol por um longo período de tempo no controle do hipertireoidismo devida a doença de Graves. Há 10 anos optou-se pela radioiodoterapia, evoluindo com hipotireoidismo, em uso de levotiroxina desde então.
Nos quatro meses anteriores à internação hospitalar, a paciente iniciou quadro diarreico com muco, dor abdominal predominantemente na região epigástrica e hipocôndrio esquerdo, pior ao ingerir alimentos, associado a perda ponderal de 15 kg e aumento do volume abdominal. Feito estudo por Tomografia Computadorizada (TC) incialmente solicito pelo gastroenterologista, sugerindo a possibilidade de adenoma hepático.
Encaminhada ao serviço de Cirurgia do Aparelho Digestivo, foi solicitado novo estudo tomográfico que evidenciou volumosa formação sólida expansiva heterogênea, localizada no lobo hepático esquerdo, ocupando o mesogástrio e o hipocôndrio, rechaçando e comprimido posteroinferiormente o estômago, bem como abaulando a parede abdominal anterior e lateral esquerda, medindo cerca de 19 x 11 x 20 cm (laterolateral x anteroposterior x craniocaudal). A formação apresentava-se predominantemente hipodensa, com áreas de atenuação de gordura, intensa vascularização e realce após o uso de meio de contraste endovenoso em seu aspecto superolateral esquerdo (Figura 1).
Os exames laboratoriais pré-operatório mostraram: HB: 10,6 g/dL; HT: 31,5 %; Leucócitos: 4890/mm3 ; Gama-GT: 27 U/L; Bilirrubina Total = 0,17 mg/dL; Bilirrubina Direta = 0,17 mg/dL; Bilirrubina Indireta = 0,1 mg/dL; ALT = 351 U/L; AST = 125 U/L; Alfafetoproteína > 1000 UI/mL (Tabela 1).
Figura 1-TC Abdominal demonstrando volumosa formação sólida no lobo hepático esquerdo, abaulando a parede abdominal anterior e lateral, medindo 19 x 11 x 20 cm. A-Sem contraste endovenoso. B, C e D-Com contraste: fases arterial, portal e equilíbrio

TABELA 1 – Exames laboratoriais pré-operatório
Exame | Resultado | Valores de referência |
HB | 10,6 g/dL | Homens: 13,3 a 16,5 g/dL; Mulheres: 11,7 a 14,9 g/dL |
HT | 31,5 % | Homens: 39,2 a 49,0%; Mulheres: 35,1 a 44,1% |
AST | 125 U/L | Homens: até 40 U/L Mulheres: até 32 U/L |
ALT | 351 U/L | Homens: até 41 U/L Mulheres: até 33 U/L |
Gama-GT | 27 U/L | Mulheres: 3 a 56 U/L Homens: 8 a 61 U/L |
Bilirrubina Total | 0,17 mg/dL | 0,2 a 1,2 mg/dL |
Bilirrubina Direita | 0,17 mg/dL | Até 1,0 mg/dL |
Bilirrubina Indireta | 0,1 mg/dL | Até 0,5 mg/dL |
Fosfatase Alcalina | 82 U/L | 30 a 120 U/L |
Plaquetas | 494000/mm³ | 150.000 a 400.000/mm³ |
Anti-HBs Total | >1000 UI/L | Não reagente: menor que 10 U/L
Reagente: maior que 10 U/L |
Anti-HBC IgM | 0,176 | Não reagente: menor que 0,90
Reagente: maior que 1,20; Duvidoso: 0,90 a 1,20 |
Anti-HBC Total | 1,830 | Não reagente: maior que 1,00
Reagente: menor ou igual 1,00 |
Anti-HCV | 0,04 | Não reagente: 0 a 0,90; Indeterminado: 0,91 a 0,99
Reagente: maior ou igual a 1 |
PCR | 0,07 mg/dL | Menor que 1 mg/dL |
Leucócitos Totais | 4890/mm³ | Homens: 3650 a 8120/mm³; Mulheres: 3470 a 8290/mm³ |
Alfafetoproteína | >1000 UI/mL | Menor ou igual a 5,8 UI/mL |
Fonte: elaborado pelos autores com dados extraídos do prontuário, 2024.
A paciente foi submetida a laparotomia, realizando-se hepatectomia do lobo hepático esquerdo, com ressecção de volumosa lesão tumoral envolvendo os segmentos hepáticos II e III (Figura 2).
Evoluiu de forma satisfatória no pós-operatório, recebendo alta no sexto dia, sendo referenciada para o seguimento ambulatorial no serviço de Cirurgia do Aparelho Digestivo. O laudo anatomopatológico evidenciou um carcinoma de células hepáticas moderadamente diferenciado e a imuno-histoquímica revelou que se tratava de um hepatocarcinoma.
Figura 2-Lobo hepático esquerdo ressecado. B e C-Peça cirúrgica seccionada com tumoração apresentando pontos hemorrágicos e intensa vascularização. D- Aspecto pós-ressecção

4. DISCUSSÃO
O hepatocarcinoma tem etiopatogenia multifatorial, com elevada associação a infecção crônica pelos vírus das hepatites B ou C, etilismo, exposição a aflotoxinas, esteatose hepática não alcoólica, alterações genéticas, e mais raramente neoplasias benignas como o adenoma hepático, entre outros fatores12,13.
Chama atenção um subtipo raro do CHC, com incidência maior em adolescentes e pacientes jovens, sem predileção por sexo, bem como sem relação com infecções por hepatites ou histórico de outras hepatopatias crônicas. Trata-se do subtipo fibrolamelar, responsável por 2% das neoplasias de origem hepatocelular. No entanto, geralmente a dosagem de Alfafetoproteína (AFP) encontra-se dentro da normalidade. Estudo realizado por Katzenstein et al18 demonstrou que em 89% dos CHCs fibrolamelar, a dosagem de AFP era normal.
É importante destacar que, no caso especifico do adenoma hepático, estudos têm demonstrado uma relação com o uso de Anticoncepcionais Orais (ACOs); e o uso dos ACOs por tempo prolongado ou doses elevadas aumentariam a ocorrência, o crescimento em tamanho e número desses tumores11. Ademais, vale ressaltar que o adenoma é um tumor hipervascular, tornando o diagnóstico diferencial com CHC, por exames de imagens, às vezes impossível, e nesses casos somente a biópsia da lesão é capaz de fazer o diagnóstico definitivo14,15,16.
Ainda assim, os exames de imagem cumprem um papel relevante na avaliação e rastreio das lesões tumorais hepáticas, notadamente do CHC, apresentando boa acurácia quando associados aos dados clínicos e laboratoriais. Por isso, programas de rastreamento utilizam-se periodicamente da ultrassonografia abdominal e dosagem sanguínea da Alfafetoproteína semestral em pacientes com infecção crônica pelo vírus da hepatite e com hepatites crônicas não virais4.
A Tomografia Computadorizada e a Ressonância Magnética (RM) com uso dos meios de contraste endovenosos são capazes de fornecer informações minuciosas das características e localização dessas lesões tumorais, tais como os aspectos de vascularização e disseminação, apresentando-se como excelentes métodos na avalição pré-operatória4,6,15. Além disso, a TC e a RM do abdome têm boa sensibilidade na detecção precoce da recorrência tumoral.
O prognóstico do CHC por vezes é sombrio quando o diagnóstico é feito tardiamente, impactando diretamente nas taxas de sucesso do tratamento. No entanto, muitos pacientes podem se beneficiar da ressecção cirúrgica, mesmo nos tumores volumosos, desde que não existam sinais de disseminação à distância, apresentando resultados semelhantes àqueles de pacientes com lesões pequenas e não disseminadas 17.
O caso relatado destaca-se pela volumosa formação sólida hepática, de rápido crescimento, em uma paciente sem histórico de uso de Anticoncepcionais Orais, infecções crônicas pelos vírus da hepatite, bem como outra hepatopatia prévia; com o diagnóstico de adenoma hepático sugerido incialmente pela tomografia computadorizada.
Os sintomas referidos eram relacionados principalmente aos efeitos compressivos sobre o estômago e demais estruturas adjacentes, levando à redução do apetite, perda de peso e dor abdominal. Dentre os exames laboratoriais, a Alfafetoproteína encontrava-se elevada no momento da admissão (>1000 UI/mL), dado comumente observado no CHC.
5. CONCLUSÃO
O Carcinoma Hepatocelular é o tumor primário maligno mais comum do fígado, frequentemente associado a cirrose hepática relacionada às infecções crônicas por hepatites virais. Todavia, apresentações atípicas são um desafio diagnóstico e podem retardar o tratamento oportuno, portanto é fundamental conhecer apresentações incomuns do CHC, objetivando a redução da morbimortalidade.
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[1] Graduado em Medicina pela Universidade Federal Maranhão-UFMA. ORCID: https://orcid.org/0009-0006-7849-3521.
[2] Mestre em Saúde da Família – FIOCRUZ/UFMA; Especialista em Radiologia; Graduada em Medicina-UFMA. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7397-6977.
Material recebido: 22 de janeiro de 2025.
Material aprovado pelos pares: 30 de janeiro de 2025.
Material editado aprovado pelos autores: 13 de março de 2025.
Respostas de 2
Parabéns meu irmão, muito sucesso em sua jornada profissional!!! Excelente conquista!!!
Excelente trabalho! Conteúdo bem explicado.